sexta-feira, 17 de abril de 2009

O Queijo e os Vermes - Resenha




[O mundo foi feito] "do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos."


A principal obra de Carlo Ginzburg (historiador italiano), datada de 1976, narra o cotidiano, a vida e o julgamento inquisitorial de um moleiro de Montereale, zona italiana do Friuli. Domenico Scandella, conhecido por Menocchio foi perseguido pela Inquisição por disseminar suas idéias heréticas ao povo de sua aldeia. A obra situa-se no século XVI, numa era marcada pela Reforma Protestante e a difusão da imprensa, na Europa pré-industrial. Ginzburg faz um estudo da história cultural e das mentalidades, numa prática de micro-história, que revela as classes subalternas e acaba desenrolando numa hipótese geral sobre a cultura popular, na qual o autor trata da influência mútua entre as culturas popular e erudita. Esse livro é o melhor livro de história que já li, pois, além de discutir um tema instigante o autor consegue fazer uma narrativa envolvente e, ao mesmo tempo, construir o perfil da personagem abordando suas principais idéias, sem encher o leitor de informações que cortaria o fio narrativo e atrapalharia o entendimento.

A personagem resgatada nos processos inquisitoriais é um camponês tão pouco comum. Moleiro de profissão e respeitado na comunidade, autodidata, alfabetizado, tinha uma vida normal como cidadão de Montereale, dedicado à suas atividades de sustento e a família, até ser chamado ao Tribunal do Santo Ofício. Ele foi acusado de herege por disseminar principalmente sua singularíssima cosmologia:
Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela mesma massa, naquele mesmo momento, e foi feito com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael." (p.40)


Além desta idéia ele disseminava: a equivalência de todas as fés; a descrença na virgindade de Maria, assim como na crucificação de Cristo, na adoração de imagens, nos Evangelhos, e no inferno. Também denunciava a riqueza da Igreja e o uso do latim, dizia que os sacramentos eram apenas “mercadorias”.

Mas não terá sido influenciado por leituras ou correntes teóricas, onde construiu suas idéias sobre os dogmas religiosos e a criação do mundo?


O livro discorre sobre possibilidades de como teria o moleiro, formulado tais idéias. Primeiro o autor compara-o aos grupos heterodoxos: luteranos e anabatistas. Logo percebe que há algumas semelhanças, mas que é improvável a cumplicidade de Menocchio com esses grupos, pois ele ignorava Justificação e Predestinação – temas centrais da Reforma. Depois deduz que essas crenças tivessem num veio de profundo radicalismo camponês, trazido à tona pela Reforma (mas independente dela), o que é contradita pela lista de leituras que o autor reconstruiu com base nos documentos processuais. E por fim, faz uma minuciosa análise nos livros que o próprio acusado confessou ter lido levando em conta não as páginas lidas, mas como era feita essa leitura – a fonte seria menos importante do que a rede interpretativa pensada pelo camponês.

Para Ginzburg, a leitura de Menocchio era parcial e arbitrária, quase uma procura de confirmação de suas idéias. Em um texto, por exemplo, um detalhe acabava se tornando o centro do discurso, alterando assim todo o seu sentido – deformava agressivamente (involuntariamente) os textos. Entretanto “não reproduzia simplesmente opiniões e teses de outros. Seu modo de lidar com os livros, suas afirmações deformadas e trabalhosas são sem dúvidas sinais de uma reelaboração original.” (p. 114). E conclui que as raízes dele eram mais profundas do que os próprios textos. Juntou assim correntes cultas e populares em um novo e confuso pensamento teológico. “Foi o choque entre a página impressa e a cultura oral, da qual era depositário, que induziu Menocchio a formular – para si mesmo em primeiro lugar, depois aos seus concidadãos e, por fim aos juízes – as ‘opiniões [...] [que] saíram da sua própria cabeça’.” (GINZBURG, 1987: 89)

Menocchiono, em 1584, foi condenado a passar o resto da sua vida na prisão. Depois de dois anos sua pena foi amenizada: ele voltou a Montereale, mas não podia sair de lá e deveria usar um hábito com uma cruz. Contudo, manteve sua posição e continuou a pregar as suas idéias heréticas, o que acabou estimulando um segundo julgamento em 1598. E foi condenado, torturado e morto na fogueira.

Como o próprio autor questiona: “Até que ponto poderemos considerar representativa uma figura tão pouco comum, um moleiro do século XVI que sabia ler e escrever?” (p. 88). Devemos pensar Menocchio, não como sendo um camponês típico, mas sim um personagem singular e não representativo, respeitando sua originalidade e percebendo dentro de seus discursos um estrato cultural profundo, emergido tanto da cultura escrita como da cultura oral.

Carlo Ginzburg traz uma grande contribuição historiográfica com esta obra. Primeiro por que seu trabalho mostra que a historiografia não se resume apenas à elite -- que produziu documentos escritos -- ou que a massa camponesa não era capaz de formular raciocínios a cerca de temas que eram considerados o estudo apenas de letrados. Também abre uma discussão sobre a relação entre as culturas popular e erudita, recusando a tese – insustentável – segundo a qual, as idéias nascem exclusivamente no âmbito das classes dominantes. E isso implica numa hipótese complexa sobre circularidade das culturas, que nos permite perceber a importância da tradição oral. E por último, porque ele foi o precursor da micro-história.


Enfim, tal estudo é extraordinário para tomarmos conhecimento do cotidiano e parte dos pensamentos de uma vítima da Inquisição, que poderia ter passado em branco para a história, se não fosse o olhar atento de Ginzburg sobre os documentos processuais. Por isso recomendo esse livro não só para estudantes de história ou especialistas, mas para todos os públicos que se interessam pelo tema.

Boa leitura e até a próxima!


Por Vilane Vilas Boas Rios


Bibliografia:

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Mulher e Trabalho


Ouve-se muito falar sobre a "emancipação" da mulher, que a mulher está cada vez mais ocupando seu espaço no mercado de trabalho, que a estrutura da sociedade pós-moderna se difere bastante daquela do século XIX - em que as mulheres não trabalhavam e viviam apenas para cuidar do lar, dos filhos e do marido. No entanto, precisamos saber que mulher do século XIX é essa, que não saia de casa, senão acompanhada de um outro homem e que assumia apenas o papel de rainha do lar.

Alguns estudos históricos, aqui na Bahia, mostram que no final do século XIX e início do século XX, uma grande parcela da população feminina trabalhava fora de casa, sendo sua maioria negras, mestiças e brancas empobrecidas. Muitas delas eram viúvas e mães solteiras que precisavam trabalhar para sobreviver. Ou seja, as "rainhas do lar" eram apenas mulheres que não precisavam trabalhar para sobreviver, que dependiam do marido e tinham boa condição financeira.

Nessa época, o cotidiano de mulheres e homens foi marcado por condições precárias no trabalho, numa sociedade estagnada em suas tradições coloniais, na qual, negros, mestiços e mulheres de uma forma geral ficavam na base da hierarquia social. Salvador possuía poucas fábricas “fundo de quintal”, que usava bastante mão-de-obra feminina, pois os salários pagos eram inferiores aos dos homens. Assim podemos notar alguns resquícios do passado, pois ainda hoje os salários pagos às mulheres são inferiores aos salários dos homens que possuem o mesmo cargo.

Tinha também os trabalhos de bordadeiras, chapeleiras, costureiras, capelistas, floristas, modistas e rendeiras que eram produzidos em casa ou nas casas dos patrões e vendidos para lojas e armarinhos. Esse artesanato doméstico foi importante porque as mulheres podiam, ao mesmo tempo, trabalhar e cuidar da família e do lar, ainda evitava “sujar” a reputação, uma vez que trabalhar fora de casa era considerado indigno.

Muitas mulheres contribuíram para a economia da Bahia num comércio fixo ou ambulante. Eram as ganhadeiras, vendedoras de rua que além de enfrentar o trabalho cansativo tinham de pagar taxas de impostos. Era um trabalho pouco valorizado e de baixa renda, salvo em épocas de festas cívicas e dias de santos que o comércio crescia muito. Essa atividade existe muito fortemente em nossa sociedade, uma vez que o desemprego toma conta do nosso país, estimulando o comércio ambulante e informal.

Mas a maior oportunidade de emprego para essas mulheres do século XIX-XX era o serviço doméstico. Considerando uma hierarquia entre os trabalhos, esse estava no mais baixo nível, pois era o que mais evocava o trabalho escravo. E aí está mais uma herança da nossa sociedade escravista: o preconceito com os trabalhos que eram ocupados por negras escravas. Continua no imaginário social a idéia de trabalho doméstico associado a indignidade e o mais interessante é percebermos que depois de séculos as relações de trabalho das domésticas e seus patrões se perpetuam. O paternalismo continua impregnado e a troca de favores orientam as relações empregada/patrão para uma camuflada harmonia em família. Eram assim, as arrumadeiras, as amas-de-leite e as catarinas, que geralmente residiam na casa dos patrões e viviam sob vínculo de poder e afetividade. Ao contrário delas as lavadeiras, gomadeiras e faxineiras administravam suas atividades com autonomia em diversas casas sem precisar viver com os patrões.



por Vilane Vilas Boas Rios


Se quiserem saber mais: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. “Trabalho feminino no espaço urbano.” In. Quem pariu e bateu que balance! mundos femininos, maternidade e pobreza: Salvador 1890-1940. Salvador: EDUFBA; CEB, 2003. p. 31- 62

segunda-feira, 13 de abril de 2009

45 anos de "Ditabranda" no Brasil - Anos de Chumbo, agora, são "Anos de Algodão"?












Foi publicado no dia 17 de fevereiro, deste ano, pela Folha de São Paulo, uma matéria falando sobre os esforços de Hugo Chávez para se manter no poder na Venezuela, a edição escreveu o seguinte absurdo:

"Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente."


"Ditabranda"? Só faltou falar que entre 1968-1974, considerado os Anos de Chumbo (por ter sido o período de maior repressão), o Brasil viveu "Anos de Algodão". Editores infelizes, ao criarem essa expressão que acaba passando uma borracha nos duros anos vividos pelos brasileiros entre 1964-1985. Essa edição da Folha criou uma grande polêmica e gerou manifestações contra o trocadilho "ditabranda", que poderia ter passado despercebido, se não fosse o significado que está por traz da "inocente" expressão. Esta expressão significa a defesa de algo indefensável (o Golpe de 1964) e, com isso, corre-se o risco de deixar esquecido na história episódios de violência contra os Direitos Humanos no Brasil. A palavra despertou o sentimento de revolta pelas milhares de vítimas (torturadas, mortas, desaparecidas) durante esses anos nebulosos da história do Brasil. Foi mais que um eufemismo, isso foi um desrespeito às famílias das vítimas, que ainda sofrem pela perda de seus entes queridos. No mínino esses jornalistas esqueceram as torturas aplicadas em presos políticos, esqueceram que seus próprios colegas de profissão, na época, não podiam editar seus textos antes de passar pela censura, e, muitas vezes, tinham que suprimir palavras ou frases que desagradavam os "Senhores" do Regime. Eles esqueceram que foi o momento mais sangrento da história do nosso país.


Encontrei um depoimento que mostra a revolta de um parente da vítima da "ditabranda":

"Há, em minha família, pessoas que trazem nos corpos e nas mentes as seqüelas das torturas dos assassinos do DOPS e do governo militar. E estas pessoas que amo, por sua vez, perderam muitos amigos naquele período. Como a Folha se atreve, por qualquer motivo que seja, a usar o adjetivo "branda" em relação à sangrenta ditadura brasileira? Tivesse o autor deste texto imbecil ficado pendurado num pau-de-arara por horas, tivesse ele levado choques nos genitais por dias, tivesse ele experimentado a agonia de um arame quente enfiado em sua uretra, tivesse ele sentido as unhas se despregando da carne, tivesse ele visto amigos morrendo sob pauladas, tivesse ele corrido o risco de ter o corpo descartado como lixo no mar ou enterrado em cova rosa como um cachorro sem dono, tivesse ele sentido dezenas de cigarros sendo apagados em sua pele, tivesse ele experimentado o pavor do afogamento em um tonel repleto de água, tivesse ele ouvido as companheiras sendo violentadas por torturadores ou sodomizadas com cassetetes, tivesse ele um mínimo de respeito para com quem passou por tudo isso, não escreveria uma barbaridade dessas. Ou, tendo escrito, se retrataria imediata e publicamente pelo absurdo cometido." (Diário de Bordo, by Pablo)


A carta a seguir é uma das centenas de cartas de manifestação, feita por intelectuais acadêmicos contra a Folha de São Paulo e o seu neologismo "ditabranda":

"Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de 'ditabranda'? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar “importâncias” e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi “doce” se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala - que horror!” MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES , professora da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP)


Caros leitores, não podemos deixar que a "ditabranda" chegue aos livros didáticos ou que seja cristalizada na memória das nossas crianças e jovens. Não podemos esquecer das barbáries cometidas e nem permitir que daqui a alguns anos a Ditadura seja definida como uma "forma controlada de disputas políticas e acesso à Justiça", como disse a Folha de São Paulo.

por Vilane Vilas Boas Rios